Copyright Week: O que aconteceu com a reforma do direito autoral no Brasil?

Mariana Giorgetti Valente (@mrnvlnt)
Pedro Nicoletti Mizukami (@p_mizukami)
Creative Commons Brasil
Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio (CTS/FGV)

Este texto foi originalmente escrito para a Copyright Week. A versão original pode ser lida aqui.

Ainda que o licenciamento aberto seja uma estratégia poderosa para corrigir algumas das muitas distorções produzidas por um sistema de direito autoral desequilibrado, não se avança muito sem uma ampla reforma do direito autoral. O Creative Commons recentemente reconheceu esse fato em uma declaração bastante firme em apoio de reformas pelo mundo:

As licenças CC são uma solução provisória, e não definitiva, para os problemas do sistema de direitos autorais. Elas são aplicáveis somente às obras cujos criadores optem, conscientemente, por licenciar ao público um direito exclusivo que a lei lhes concede automaticamente. O sucesso do licenciamento aberto demonstra os benefícios que o compartilhamento e o remix podem trazer para os indivíduos e para a sociedade como um todo. No entanto, o CC opera dentro dos parâmetros dos direitos autorais, e, consequentemente, apenas uma pequena fração de obras protegidas será coberta pelas nossas licenças.

O Brasil é um dos muitos países que hoje enfrentam a difícil tarefa de reformar sua legislação de direitos autorais, e a Copyright Week é uma boa oportunidade para refletirmos sobre onde se avançou — e onde nem tanto — até o momento. A lei atual, de 1998 (Lei n. 9.610), é considerada uma das piores leis do mundo pela Consumer’s International IP Watchlist, tendo sido classificada com uma nota C-. No que diz respeito ao processo em andamento de reformá-la, temos tanto razões para ser otimistas quanto razões para ficar preocupados.

Em dezembro de 2007, o Ministério da Cultura, então sob administração de Gilberto Gil, deu início ao Fórum Nacional do Direito Autoral, uma série de seminários pelo país que contaram com a participação de advogados, pesquisadores, artistas e representantes da indústria cultural brasileira. Com base nesses eventos e tantas outras reuniões, abertas e fechadas, com diferentes atores do cenário, o Ministério da Justiça preparou um anteprojeto de reforma do direito autoral, que foi submetido à consulta pública em 2010.

A consulta ocorreu numa plataforma online bastante semelhante à que foi usada para a consulta pública do Marco Civil. Comentários podiam ser enviados artigo por artigo, e a análise de quase 8.000 contribuições resultou num anteprojeto que era consideravelmente superior à lei atual, com maior destaque a aspectos relativos ao interesse público, uma lista expandida de limitações ao direito autoral — incluindo uma limitação geral —, uma permissão para violação de DRM/TPMs em determinados casos, fiscalização da atividade de gestão coletiva (um problema grave no Brasil), e o reconhecimento explícito de que o direito autoral pode ser limitado para fins de defesa do consumidor, pelo direito antitruste, bem como por direitos humanos.

No entanto, quando Dilma Rousseff foi eleita, em 2010, o processo de reforma dos direitos autorais sofreu seu primeiro baque. Para suceder Juca Ferreira como seu Ministro da Cultura, Rousseff indicou Ana de Hollanda, uma cantora com relações próximas à indústria fonográfica e ao ECAD — um dos maiores adversários do anteprojeto. Foi bastante representativo de sua nova postura frente a direitos autorais que uma de suas primeiras medidas tenha sido remover as licenças Creative Commons do site do Ministério da Cultura. Logo depois, de Hollanda substituiu a maior parte das pessoas que trabalhavam para a Diretoria de Direitos Intelectuais do MinC, e praticamente pôs um fim ao processo de reforma, apesar de ter empreendido uma revisão do texto.

Um ano e oito meses depois de ter sido empossada, de Hollanda foi afastada do Ministério, em grande parte, embora não exclusivamente, devido ao seu tratamento às questões de direito autoral. A nova ministra, Marta Suplicy, sinalizou pela continuação dos anos Gilberto Gil/Juca Ferreira, recontratando Marcos Souza, o antigo Diretor de Direitos Intelectuais, que havia sido afastado por Ana de Hollanda. Isso ocorreu em outubro de 2012. Desde então, o anteprojeto passou por mais uma série de modificações, e está agora na mesa da Casa Civil, pronto para ser enviado ao Congresso.

Mas por que, então, ele ainda não foi enviado? E por que a versão final não foi publicada, considerando-se que o processo fora conduzido com um grau razoável de transparência, pelo menos nos estágios iniciais?

1. Marco Civil e a disputa sobre a responsabilidade de intermediários. Um dos projetos de lei mais cotroversos sendo debatidos hoje na Câmara dos Deputados é o já mencionado Marco Civil, que lida com, entre outros temas, neutralidade de rede e responsabilidade de intermediários.

A questão da responsabilidade de intermediários no Marco Civil está umbilicalmente ligada ao direito autoral. O projeto inicial, também resultado de uma consulta pública, criava um sistema mediante o qual um conteúdo só pode ser removido da Internet em resposta a uma ordem judicial, em clara oposição a um sistema de notice-and-takedown. No entanto, concessões feitas a atores da indústria, encabeçados pelas Organizações Globo, estabeleceram uma exceção à regra: o esquema do Marco Civil não é aplicável nos casos de infração a direito autoral, cujas regras devem ser estabelecidas, determina o texto, na reforma do direito autoral. A reforma ganhou então mais uma espinhosa controvérsia.

2. As eleições de 2014 como um fator para o atraso. O Brasil terá eleições presidenciais em 2014. O Governo não tem qualquer incentivo para enviar propostas importantes para o Congresso antes que a reeleição (ou não) de Dilma Rousseff seja decidida. Em 2013, como alguns dos projetos na Câmara dos Deputados já foram controversos o suficiente, incluindo o Marco Civil, o Governo decidiu evitar entrar na disputa por essa reforma. Não seria surpreendente se o Governo decidisse esperar até depois de 2014 para enfrentar a questão — isso se Dilma for reeleita.

Dado o cenário, o que é mais perturbador sobre o processo todo é que a reforma do direito autoral corre o risco de perder proeminência durante 2014. Muito já se perdeu em 2013, dado que a sociedade civil brasileira esteve empenhada na aprovação do Marco Civil. Além disso, os vazamentos de Snowden e o encontro que ocorrerá em 2014 em São Paulo sobre o futuro da governança global da Internet fizeram com que o direito autoral se tornasse um problema secundário. Privacidade e espionagem parecem ter assumido a posição de destaque.

Um outro fator complicador é que um dos pontos mais importantes da agenda de reforma foi aprovado durante 2013: regulação da gestão coletiva. A Lei 12.853/2013 contém disposições para mais eficiência e transparência na administração de direitos de execução pública, potencialmente resolvendo um dos problemas mais sérios que o Brasil enfrentava no que diz respeito a direito autoral e indústria fonográfica. Evidentemente, essa reforma não pode de forma alguma ser vista como um passo para trás; no entanto, separar a questão da gestão coletiva da reforma geral de direitos autorais significa que alguns dos mais proeminentes atores que pressionavam pela reforma podem perder interesse nela. Alguns deles podem inclusive se opor a alguns dos itens.

Para terminar, ao mesmo tempo que precisamos reconhecer os esforços do Ministério da Cultura em avançar na discussão, pesquisadores e a sociedade civil ainda não tiveram acesso ao texto final do anteprojeto — o que está atualmente na Casa Civil. Organizações da sociedade civil estão tentando restabelecer a rede que fora criada nos estágios iniciais do processo de reforma. Já era hora: ainda temos um longo caminho pela frente, e os desafios que virão exigirão uma forte organização e o amplo apoio de indivíduos e organizações pró-reforma.

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