O incêndio na Cinemateca Brasileira, patrimônio e alternativas para a falta de financiamento

Foto: CARLA CARNIEL / REUTERS

A sociedade brasileira não deveria conviver com incêndios como o da Cinemateca Brasileira e falta de incentivos à cultura; mas alternativas estão disponíveis

Por André Houang, Giovanna Fontenelle, Juliana Monteiro, Leonardo Foletto, Nanashara Piazentin, da coordenação do Creative Commons Brasil

Na noite de 29 de julho de 2021, um incêndio assolou o prédio anexo da Cinemateca Brasileira, localizado na Vila Leopoldina, em São Paulo. Não foi o primeiro a destruir uma instituição de memória brasileira. Em 2015, o Museu da Língua Portuguesa em São Paulo foi destruído pelas chamas (finalmente reaberto em 1º de agosto de 2021) e, em 2018, o Museu Nacional foi reduzido às cinzas. Não foi nem o primeiro na maior instituição de audiovisual brasileiro desde a década de 1940. Em 2016, o fogo também ardeu em outro prédio da Cinemateca.

Todos esses incêndios têm uma origem em comum. Eles são o produto do sucateamento das instituições de memória brasileiras. Por anos, universidades, museus,arquivos e bibliotecas têm sido vítimas de seguidos cortes nos seus financiamentos. As perdas são inestimáveis: não há nada que seja capaz de repor o acervo físico da Cinemateca Brasileira. Entretanto, certas políticas de digitalização, difusão e compartilhamento podem diminuir as perdas dessas catástrofes anunciadas.

A digitalização de acervos é fundamental para a preservação da cultura e da história e para sua divulgação. Museus são lugares de preservação do nosso patrimônio, quanto divulgadores de conhecimento e cultura. É por isso que a difusão e o compartilhamento dos acervos são consideradas questões de políticas públicas. A própria Cinemateca afirma que sua missão é: “preservar e ampliar o acesso à produção audiovisual brasileira através de ações de preservação, difusão e formação”. Atualmente, preservar e ampliar o acesso passa necessariamente pela digitalização.

No Plano Nacional de Cultura, previsto no artigo 215 da Constituição Federal e criado pela Lei 12.343/2010, onde são estabelecidos os princípios que devem orientar o poder público na formulação de políticas culturais, está na Meta 40 a disponibilização na internet dos conteúdos que estejam em domínio público ou licenciados do acervo das instituições do (antigo) Ministério da Cultura e entre eles a digitalização das obras audiovisuais que compõem o acervo da Cinemateca Brasileira. 

Em 2019, a Cinemateca Brasileira possuía apenas 2,1% do seu acervo digitalizado e disponível na internet. E em 2020 findava o prazo de vigência do Plano Nacional de Cultura, que deveria ter sido revisto constantemente para a implementação de suas metas, o que não ocorreu.

Interior do prédio principal da Cinemateca Brasileira, na Vila Mariana, em São Paulo. Andréa Reis, CC BY

Direito autoral como entrave

Além do entrave financeiro e da ausência de políticas públicas eficientes e contínuas, a digitalização de acervos também encontra no direito autoral um obstáculo importante. A lei brasileira não contém nenhuma exceção ao direito autoral que se aplique a instituições de memórias ou contém qualquer previsão sobre obras órfãs (situações em que o autor da obra não é conhecido, algo comum em acervos). Além da falta de recursos financeiros para a manutenção e digitalização dos acervos, a ausência de segurança jurídica e a falta de informação sobre o assunto frequentemente impede que essas instituições digitalizem seus arquivos, inviabilizando  assim que cumpram suas missões de preservar e ampliar o acesso aos seus acervos. 

No entanto, mesmo com o sucateamento das instituições de memória brasileiras e a insegurança relacionada aos desafios do direito autoral, museus e outras instituições podem se apoiar em políticas públicas formuladas anteriormente (como o já mencionado Plano Nacional de Cultura) e até em alternativas fornecidas por licenças livres, abertas e gratuitas, como as Creative Commons, para difundir e preservar ainda mais as suas obras de maneira digital – tema que é o foco do movimento global chamado Open GLAM. Isso é relevante, sobretudo, para coleções como o da Cinemateca Brasileira, que tem por características serem compostas por obras ligeiramente mais recentes (mas não recentes o suficiente para serem realizadas no período das tecnologias digitais) e que não estão em domínio público ainda, estando mais suscetíveis à falta de digitalização.

O incêndio da Cinemateca Brasileira não foi o primeiro. E dada a (ausência de) política para preservação da história e cultura brasileiras, provavelmente tampouco será o último. Os governos precisam valorizar o patrimônio cultural e suas instituições de preservação. Precisam financiar tais instituições de memória. E a lei de direitos autorais precisa ser reformada para que elas possam digitalizar seus arquivos e cumpram suas missões. 

No meio tempo, as chamas da política de cortes seguirão destruindo o Brasil. 

Leave a Reply

Your email address will not be published.