Publicado por Brigitte Vézina e Alexis Muscat, tradução por Giovanna Fontenelle, coordenadora de Open GLAM e Wiki do CC Brasil.
Texto originalmente publicado em 8 de agosto de 2020, em inglês.
9 de agosto é o Dia Internacional dos Povos Indígenas, uma data que visa aumentar a consciência e apoiar os direitos e aspirações dos povos indígenas em todo o mundo. Nós do Creative Commons (CC) queremos destacar esta importante celebração e reconhecer que, internacionalmente, medidas precisam ser tomadas para proteger os direitos e interesses dos povos indígenas em suas culturas únicas. Uma medida, que se cruza com nosso trabalho Open GLAM na política do CC, refere-se ao compartilhamento aberto e online do patrimônio cultural indígena resguardado em instituições de patrimônio cultural.
Creative Commons e o Movimento Open GLAM
Muitas galerias, bibliotecas, arquivos e museus (conhecidos coletivamente como “GLAMs”) trabalham arduamente para tornar as coleções do patrimônio cultural disponíveis ao público. Para essas instituições, proporcionar acesso ao conhecimento e à cultura é um aspecto central de seu dever e de sua missão de interesse público. Muitas instituições estão digitalizando e disponibilizando online coleções de patrimônio cultural em um esforço para preservar e compartilhar abertamente materiais de patrimônio cultural. O movimento Open GLAM reconhece essa missão e promove ativamente essa premissa, ajudando os GLAMs a aproveitar ao máximo as licenças e ferramentas CC para comunicar o que os usuários podem fazer com o material digitalizado. No CC, nós defendemos fortemente o acesso aberto ao material de domínio público mantido nas coleções GLAM para o benefício de todos. O CC acredita firmemente que as reproduções digitais de material de domínio público dentro dessas coleções devem permanecer no domínio público e serem acessíveis online da forma mais aberta possível.
Patrimônio cultural indígena e Open GLAM
A reutilização das liberdades associadas a materiais de domínio público e fomentada por meio da digitalização pode criar tensão, quando se trata da herança cultural indígena. A lei de direitos autorais existente, embebida em conceitos e valores ocidentais, não protege adequadamente as expressões culturais tradicionais indígenas, nem reflete ou explica suficientemente os valores culturais indígenas. Por padrão, muitas formas de herança indígena ou “expressões culturais tradicionais” (que podem incluir conteúdo secreto, sagrado ou sensível) são injustamente consideradas de domínio público sob a lei de direitos autorais convencional. Um dos desafios é que o sistema de direitos autorais não contabiliza adequadamente as maneiras como as expressões culturais tradicionais são criadas, coletivamente mantidas e transmitidas através das gerações. Os critérios de elegibilidade de direitos autorais, como originalidade e autoria, muitas vezes estão em conflito com as noções indígenas de criatividade e custódia sobre o patrimônio cultural de uma comunidade. Como resultado, pode parecer que esse patrimônio está livremente disponível para uso e reutilização, quando na verdade esse pode não ser o caso. Permitir este nível de acesso e uso levanta questões éticas que devem ser totalmente consideradas.
“A lei de direitos autorais existente, embebida em conceitos e valores ocidentais, não protege adequadamente as expressões culturais tradicionais indígenas, nem reflete ou explica suficientemente os valores culturais indígenas.”
A noção de “domínio público” é relevante dentro dos limites do sistema de direitos autorais. Assim, embora o patrimônio cultural indígena possa ser considerado de domínio público sob as regras de direitos autorais e, portanto, de uso livre, outros direitos e interesses ainda podem ser atribuídos a ele, provenientes de várias fontes. Isso inclui outras restrições legais como direitos à privacidade, direitos de propriedade intelectual (incluindo direitos sui generis para proteger expressões culturais tradicionais) e direitos de personalidade, bem como leis e protocolos consuetudinários indígenas.
Na prática, isso significa que o acesso e o uso de materiais indígenas podem ser limitados e justificados por motivos encontrados fora do sistema de direitos autorais. Como esses direitos e interesses não são protegidos pela lei de direitos autorais, eles não são licenciados pelas licenças e ferramentas Creative Commons, que operam exclusivamente dentro do sistema de direitos autorais. Isso significa que os termos ou condições específicas de acesso e uso que se baseiam nos direitos, interesses ou desejos indígenas não são totalmente atendidos ao aplicar licenças e ferramentas CC apenas e que medidas adicionais podem ser aconselháveis para refletir corretamente as condições associadas ao acesso e uso de expressões culturais tradicionais. Local Contexts, um sistema de rotulagem inspirado no Creative Commons, foi projetado para resolver esse problema alertando os reusuários sobre os protocolos locais estabelecidos pelas comunidades indígenas.
GLAMs estão em uma posição central para dar passos ativos em apoio aos valores e interesses culturais indígenas. Por meio da tomada de decisão cuidadosa, intencional e respeitosa, os GLAMs podem permitir o tratamento ético dos materiais do patrimônio cultural, indo além da aplicação da lei de direitos autorais convencional e da determinação do status de domínio público de uma obra. Os GLAMs devem levar em consideração os direitos e interesses dos povos indígenas, especialmente em relação à digitalização, acesso e reutilização do patrimônio cultural indígena.
Um estudo das políticas GLAM sobre patrimônio cultural indígena
Em um esforço para entender melhor como os GLAMs estão lidando com essa tensão, realizamos uma pesquisa documental com o objetivo de pesquisar e analisar as políticas e práticas de GLAM que lidam com o tratamento de materiais culturais indígenas. Depois de coletar uma diversificada gama de recursos de vários GLAMs localizados em diferentes regiões do mundo, nós os estudamos para encontrar as tendências em comum, as melhores práticas, além de estratégias e fundamentos.
Descobrimos que algumas instituições tentam encontrar um equilíbrio entre seu objetivo de compartilhar coleções abertamente e a necessidade de priorizar os interesses dos povos indígenas em seu patrimônio cultural. As políticas em vigor no Museu Memorial da Guerra de Auckland (discutido aqui pelo Open GLAM no Medium), no Museu da Nova Zelândia Te Papa Tongarewa e no Powerhouse Museum são ótimos exemplos de instituições que trabalham para atingir esse equilíbrio.
Além disso, fomos capazes de identificar três temas chave nas políticas pesquisadas:
- Agradecimento — GLAMs devem reconhecer e afirmar os interesses dos povos indígenas em sua propriedade cultural e intelectual, existente dentro e fora da lei de direitos autorais convencional.
- Consulta — GLAMs devem formar relacionamentos autênticos e significativos com as comunidades de origem, compreendendo a lei e os protocolos consuetudinários e determinando as necessidades e desejos da comunidade em relação ao seu patrimônio cultural.
- Tutela — GLAMs devem respeitar ativamente as decisões da comunidade em relação à digitalização, acesso e uso, dando às comunidades indígenas agência total sobre como seu material cultural é tratado.
Embora esta pesquisa nos forneça uma visão inicial, ela é apenas o primeiro passo para compreender as interrelações importantes, mas complexas, entre os objetivos do movimento Open GLAM e a celebração do domínio público, por um lado, e o ético, e às vezes legal, com a obrigação de respeitar a herança cultural indígena. Olhar para as políticas institucionais investiga um aspecto estreito de uma conversa muito mais ampla. Mais trabalho precisa ser feito e o CC continuará a explorar maneiras de chamar a atenção para este problema. Nesse ínterim, continuamos convencidos de que, no que diz respeito ao patrimônio cultural indígena, os GLAMs devem reconhecer que as restrições de acesso e reutilização podem ser justificadas em certas situações. Com esforços contínuos, esperamos informar melhor o movimento Open GLAM sobre as melhores práticas ao digitalizar e disponibilizar materiais online, representando mais do que apenas o status de “domínio público” do patrimônio cultural indígena.
“…continuamos convencidos de que, no que diz respeito ao patrimônio cultural indígena, os GLAMs devem reconhecer que as restrições de acesso e reutilização podem ser justificadas em certas situações.”
Seguindo em frente, nós da Creative Commons pretendemos explorar caminhos para encontrar maneiras de resolver essa tensão no espaço GLAM e além. Idealmente, gostaríamos de realizar mais pesquisas para desenvolver opções de política informadas, manter conversas abertas e consultas com as partes interessadas relevantes sobre essas questões importantes com base nos princípios de colaboração, inclusão e transparência, e continuar a esclarecer como as licenças e ferramentas CC funcionam e desenvolver maneiras de refletir e explicar melhor os direitos e interesses indígenas em seu patrimônio cultural.
Esta postagem foi traduzida do inglês para português | română | français | español | italiano.